quarta-feira, agosto 27, 2014

Na hora do parto: rezas, ervas e dor


Duzentos e setenta dias: desde sempre, hora do parto. Sinais? Pingos de sangue e as primeiras dores – nos livros de médicos do século XVI ao XX, chamadas de “puxos”. No interior, até bem pouco tempo atrás, era a “perrengada”, o “despacho” ou o “rodiadô”, quando as mulheres davam à luz em casa. Era comum a gestante fechar-se no quarto, portas e janelas cerradas, somente avós, tias e vizinhas no recinto. Daí a pouco um choro anunciava a chegada de mais um membro da família. Atualmente, as cesarianas deram lugar aos partos normais. O número aumentou tanto que, no final dos anos 1990, o governo federal destinou a elas apenas 40% das verbas totais para partos em hospitais conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS).

E em casa? Pesquisas revelam que, até o final da década de 1990, técnicas, posições, rezas e beberagens usadas para facilitar o parto em domicílio não sofreram grandes mudanças. Banquinhos baixos, gamelas, o colo do marido ou de uma mulher forte, cordas passadas por portas e traves em que as gestantes se penduravam, parto de cócoras, de joelhos, de pé com as pernas abertas e fletidas – enfim, desde a noite dos tempos, não houve variações nas posições em que se dá à luz.

Em áreas rurais, no lugar de remédios de farmácia, partes untadas com azeite de mamona ou gordura de animais e beberagens e banhos para diminuir a dor são ministrados tal como no passado. A erva-de-são-joão faz parte da receita analgésica desde tempos imemoriais. Arruda e picão, também. O chá de cordão-de-frade e agripalma, ainda hoje ingeridos, são analgésicos registrados desde o século XVIII. Patuás sob os colchões e orações a santa Margarida e a Nossa Senhora do Parto também existem desde o século XVI: “Minha Santa Margarida, não estou prenhe nem parida, bote-me no rol de sua escolhida”! Vestir roupa masculina, para “despachar mais rápido”, é tradição portuguesa que vigora desde o século XVIII: “vestir a ceroula do marido e ao mesmo tempo o chapéu na cabeça da mulher às avessas” – a autoridade masculina se faz presente para atenuar as dores da mulher; do homem depende o bem-estar dela.

Para expulsar a placenta? Ingerir três grãos de feijão. Depois, é preciso juntar a “mãe do corpo”, ou seja, “os ovários, o útero, tudo o que a mulher usa para reproduzir”, explica uma parteira. Parteiras no interior falam com a “mãe do corpo”: “Eu coloco o dedo no umbigo e aperto, quando ela não bate ou bate fraquinho é porque a mulher está doente”. O remédio é a massagem com óleo de andiroba, cânfora ou azeite.

Retrato fiel dos partos em casa, em pleno século XX, deixou-nos o grande escritor Autran Dourado. Em Ópera dos mortos, assim ele descreveu o de Rosalina, seu personagem principal:

“Ôi, agora veio forte demais da conta. Morde o pano, minha filha que você corta os beiços, a língua, se machuca. Isto, segura na cama, faz força. É bom já ir fazendo força para ver se ele sai. Passou, ainda não está na vez. Ela agora está fungando que nem um cachorrinho, aprendeu. De todo o jeito sai. Bem que ajuda. A pele esticadinha que nem um tambor. Rataplã. A gente pode ver ele se mexendo lá dentro. Ali, os pés estufados que nem um ovo na barriga, dando cutucão. Ele se vira e revira. Igual um bacorinho num saco [...] oi, agora a coisa vem vindo. Isto, força! Agarra na cama! Força! Lá vem ele apontando só falta um tiquinho, aguenta. Um tiquinho só e pronto. Veio! Amarelo, da mesma cor do barro tabatinga”. 

Os saberes tradicionais ainda interessam à parturientes e aos médicos, e, hoje, especialistas reconhecem a contribuição das parteiras na defesa do parto normal, que arregimenta cada vez mais defensores.

Texto de Mary del Priore

quinta-feira, agosto 14, 2014

Tristeza: morre Nicolau Sevcenko


A notícia da morte de Nicolau Sevcenko, aos 61 anos, foi um choque para nós. Fui aluna dele na USP e tive a oportunidade de assistir à defesa de sua livre-docência, em 1992, sob o título “Orfeu Extático na Metrópole: os frementes anos 20″. Além de um grande historiador, Nicolau era um excelente professor, sempre disposto ouvir seus alunos. Um de meus livros preferidos de História do Brasil é “Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República”. Segue um pequeno texto meu, baseado nesta obra, em que o historiador nos dá um panorama da sociedade do Rio de Janeiro, pós-Império. É apenas uma pincelada de suas ideias, vale a pena conhecer suas obras. 

A República era identificada com um projeto de modernização do País: rejeitava-se tudo que era relacionado ao regime anterior como sendo arcaico e retrógrado. 

O Rio de Janeiro era o centro da nova ordem econômica e política: a capital era o maior núcleo da rede ferroviária nacional, ligando-se ao centro produtor de café do Oeste Paulista e outros importantes estados fornecedores de produtos agropecuários, além de manter o comércio de cabotagem com os estados do Norte e Nordeste.

Em “Literatura como Missão”, Nicolau Sevcenko descreve o ambiente efervescente da capital, que passava por um processo de remodelagem urbana e social. Era preciso varrer para longe das vistas tudo o que fosse feio, velho, sujo e pobre. Grandes avenidas, edificações e monumentos foram erguidos. Os moradores dos cortiços eram escorraçados para a periferia. O Rio de Janeiro deveria se modernizar a qualquer custo, seguindo o modelo de Paris. A Campanha da Regeneração da cidade, levada à frente pelo prefeito Pereira Passos, e a campanha de vacinação de Oswaldo Cruz, que resultou na Revolta da Vacina (1904), mostram bem a essência deste novo projeto civilizador.

Os novos donos do poder queriam deixar suas marcas na cidade, destruindo tudo que lembrasse a cultura popular e os hábitos considerados antiquados. A campanha para tornar a cidade mais civilizada chegou a excessos que beiram o absurdo, como a criação de uma lei que obrigava os cidadãos a usar paletó e a vestir sapatos para circular pela região central da cidade. Quem fosse pego descalço ou “em mangas-de-camisa” poderia ser preso, o que, de fato, chegou a ocorrer, já que o projeto passou em segunda discussão no Conselho Municipal.

O consumismo, segundo o historiador, tornou-se parte do cotidiano das camadas mais abastadas, para as quais era fundamental adquirir as últimas novidades vindas da Europa. No início do século XX, a moda era uma obsessão entre a elite carioca. Todos sonhavam em ser chic ou smart, ou seja, desfilar com as vestimentas e os acessórios da última moda. As colunas sociais começavam a ditar as normas de vestuário e de comportamento para a mais fina sociedade. A Rua do Ouvidor era o maior centro do comércio sofisticado, oferecendo os artigos importados mais cobiçados. Logo, as tradicionais sobrecasaca e cartola pretas, símbolos da sociedade patriarcal e aristocrática do Império, foram substituídas pelo paletó de casimira clara e o chapéu de palha.

A mentalidade que dominava certas parcelas da população na época caracterizava-se pelo “desejo de ser estrangeiro”.  O gosto do brasileiro deveria ser melhorado tendo como modelo a Europa, portanto, tudo o que fosse tipicamente brasileiro e popular era considerado de mau gosto. Até o Carnaval deveria deixar de lado as fantasias de índio e de cobra viva, para ser povoado por pierrôs, colombinas e arlequins. De acordo com Sevcenko, a moda foi a única tentativa de aprimoramento dos hábitos sociais do brasileiro que realmente foi consolidada com sucesso. Para o historiador, isto é explicado pela formação de um mercado de tecidos, roupas e acessórios na Belle Époque, que se baseava no aproveitamento dos estoques europeus no fim das estações para os consumidores do hemisfério sul. – Márcia Pinna Raspanti.

Obras de Nicolau Sevcenko:

“A Revolta da Vacina” (1983, ed. Brasiliense)
“Orfeu Extático na Metrópole” (1992, ed. Companhia das Letras)
“Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na 1ª República” (1995, ed. Brasiliense)
“História da Vida Privada no Brasil (Volume 3)” (1998, ed. Companhia das Letras, organizador)
“A Corrida para o Século 21″ (2001, ed. Companhia das Letras)